quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O fim da autenticidade?

O resgate dos mineiros chilenos é um marco na história da televisão: é o funeral simbólico da autenticidade - já há muito desaparecida dos nossos ecrãs, exceptuando algumas aparições fugazes.
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A única coisa verdadeiramente autêntica neste espectáculo mediático são os sentimentos profundos dos mineiros - mas, mesmo estes, contidos, modelados por imperativos políticos e de imagem televisiva.
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Até numa ilha deserta a vida seria mais interessante.
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E um bom romance do Vargas Llosa é mais verosímil do que esta make up da realidade.
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A ficção ultrapassa a realidade: não no plano da imaginação, como é comummente referido, mas no da similitude do imanente.
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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Mario Vargas Llosa - um Nobel tardio e urgente

Embora não haja limites para o reconhecimento público, mais vale tarde e em vida do que nunca ou postumamente.
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Mario Vargas Llosa ganhou o Nobel da Literatuta 2010. Mas já o podia ter ganho há 20-30 anos. De certo modo, é incompreensível que só agora lho tenham atribuído. Por outro lado, é significativo que tenham escolhido este momento da História.
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Num mundo de regimes ditaturais emergentes, de princípios civilizacionais quase sagrados postos em causa, de transformações económicas e sociais imprevisíveis, as obras de Mario Vargas Llosa poderão servir-nos de farol, de baluarte do muito que foi conquistado pelo Homem no último século.
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Se a minha humilde opinião vos servir de guia, são três as obras que deverão ler urgentemente:
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- A Cidade e os Cães, 1963
- Conversa na Catedral, 1969
- A Guerra do Fim do Mundo, 1981
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Não, não li toda a sua obra. Mas li o bastante para não necessitar de aconselhar mais nenhum título. E se puderem ler apenas uma delas, percam-se no labirinto das conversas na Catedral, que assim começa:
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Da porta de La Crónica, Santiago comtempla a Avenida Tacna, sem amor: automóveis, edifícios desiguais e desbotados, esqueletos de anúncios luminosos a flutuar na neblina, o meio-dia cinzento. Em que altura se tinha fodido o Perú? Os ardinas vagueiam entre os veículos detidos pelo semáforo da Wilson, apregoando os jornais da tarde, e ele começa a andar, devagar, em direcção à Colmena. De mãos nos bolsos, cabisbaixo, é escoltado por transeuntes que se dirigem, também, à Plaza San Martín. Ele era como o Perú, Zavalita, a certa altura, tinha-se fodido. Pensa: em que altura? De fronte do Hotel Grillón, um cão vem lamber-lhe os pés: põe-te a mexer, não vás estar raivoso. O Perú fodido, pensa, Carlitos fodido, todos fodidos. Pensa: não há solução.
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É uma obra muito difícil, de diálogos cruzados no espaço e no tempo, em que o leitor é chamado a reconstruir as peças da narrativa. O sofrimento exigido ao leitor nessa reconstrução vertiginosa espelha a opressão que condiciona os actos e as convicções dos personagens. É uma obra genial, daquela mão-cheia que levaríamos para uma ilha isolada.
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Mas façam um esforço suplementar e leiam as outras duas. Mais fáceis de ler, mas não menos grandiosas. Merece o Vargas Llosa e merecemos nós, apaixonados por textos sublimes ou simples homens preocupados com o seu futuro.
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Imagem da capa e excerto da edição de 1991 do Círculo de Leitores